“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (Jose Saramago)
Sobre a cegueira... (Mas não era pra ser sobre literatura?)
Essa coluna destina-se a dissertar sobre um campo vasto: A literatura e suas abrangências... Ocorre, porém, que esta não encerra-se no espaço entre as páginas de uma obra impressa. Em contrario, o processo de formação de pensamento a partir da leitura, inicia-se no livro, mas vai além, porque à palavra escrita, somam-se os inúmeros significados que provoca em uma consciência e a irremediável transformação que opera na vida de quem lê, levando a uma nova forma de pensar e viver. Então não se lê somente no livro, lê-se na vida, pelo simples fato de que, como seres humanos estamos fadados ao exercício doloroso e constante de buscar sentido, construindo uma linguagem comum.
Cinema nada mais é do que linguagem, visual e sonora, escrita na tela luminosa, em contraste com o escuro. É necessário que exista a escuridão, bloqueando o sentido básico da visão para que se possa perceber a mensagem cinematográfica de forma mais completa. Diante da tela estamos indefesos, inertes,prontos a ser invadidos por uma sucessão de palavras imagéticas que irão gravar-se no nosso inconsciente definitivamente, transportando-nos para um universo desconhecido de sensações as mais inesperadas, sem o menor controle ou previsão.
O filme “Ensaio sobre a cegueira“, baseado na obra de mesmo título do autor português e Nobel de literatura José Saramago, é uma viagem incessante ao universo dos sentidos, um mergulho profundo no inconsciente coletivo humano. E o que é pior: às cegas. Sobre o pretexto de uma história de ficção onde a sociedade atual é acometida de uma epidemia de cegueira, o filme narra a evolução do caos, quando a subtração de um único sentido provoca uma ruptura sem precedentes na vida contemporânea. Metaforicamente essa abstração, levada ao caráter de epidemia, expõe o ser humano à realidade, sobre ele mesmo e o outro.
No inicio do filme, o primeiro caso ocorre no meio do trânsito, vitimando um motorista que, em questão de segundos, passa de condutor de sua própria vida a objeto da piedade alheia. É cercado por curiosos por não conseguir movimentar seu carro e precisa que o levem para casa. No escuro, todas as pequenas certezas do cotidiano se rompem como por mágica e o primeiro cego é conduzido para casa por um estranho que, ao deixá-lo em seu apartamento, rouba seu carro.
O público nesse momento recebe o primeiro choque: Como é possível uma maldade tamanha com um inválido? Mas ainda há mais por vir. Os casos de cegueira vão se multiplicando a partir do primeiro e daqueles com os quais este tem contato quando de sua visita ao médico, incluindo pacientes, recepcionistas e até mesmo o médico, levando-o ao desespero e a tentar contato com as autoridades de saúde. A resposta do governo é trancafiar a todos num manicômio abandonado, simbolicamente representando a exclusão de todo aquele que possa perturbar a ordem social.
Os cegos, um a um, vão sendo encarcerados, juntando-se em celas, sendo que, ao médico acompanha sua mulher, a única a qual a cegueira não acometera. É ela a única que vai tentar ordenar o caos, cuidando de todos e tentando restituir-lhes algo de humano. Mas o que afinal é humano, quando eliminam-se as aparências?
Os indivíduos desprovidos de visão retornam ao seu estado mais natural, expondo sentimentos de forma crua, quase de volta à sua condição de animais. Mas, associada à completa desordem, a capacidade de pensar persiste, porque os cegos organizam-se em grupos, e como é da natureza humana inicia-se o embate entre bons e maus, pelo mais vil e essencial dos motivos: a comida. Os que detém o poder através do revólver, desmentidas todas as idéias de compaixão humana, obrigam os outros a entregar-lhes seus pertences de valor, ao que cabe uma pergunta: Afinal de contas, quais serão os valores numa sociedade da imagem, uma vez que já não se pode mais enxergar?
O filme vai, um após um, derrubando os dogmas contemporâneos de civilidade, respeito, piedade, afeto, todos jogados ao chão, infestado de roupas e restos de comida, misturados a excrementos, onde os cegos se arrastam, dia após-dia, em sua tentativa de continuar existindo. Em um determinado momento, o grupo que guarda a comida é visitado pelo médico, que ao perceber que entre eles esconde-se um cego natural, dos que já nasceram sem enxergar, dispara, incrédulo: “Você que é cego devia ter mais compaixão pelos outros”. Ao que o outro responde: ”Ele só é cego, é uma pessoa como outra qualquer”. Onde cabe uma discussão sobre os conceitos pré-estabelecidos de cooperação entre deficientes e não-deficientes e a pergunta: Até onde vai o preconceito e começa a identificação como seres humanos,sem diferenças, em respeito não pelas fraquezas de uns, mas pela consciência de que estão todos dentro do mesmo plano ,sem hierarquias?
O tempo trata de extinguir qualquer resquício de estabilidade e os cegos se amontoam sobre o regime do medo, sob o comando sutil da mulher do médico, buscando manter alguns rituais simbólicos, como a lavagem e o enterro dos seus mortos, indicando que algumas subjetividades ainda permanecem, mesmo sob o caos. .E quando eles ultrapassam os limites da desesperança e do desconsolo, percebem que foram deixados de lado pelo poder estabelecido, fugindo então do cárcere, em grupo, o mesmo que se manteve ao lado do médico e sua mulher.
Amedrontados, de mãos dadas, com a exata noção de que suas idéias pré-estabelecidas não servem mais para essa nova condição, recomeçam passo a passo a caminhada de volta à casa, comprovando pela observação da mulher do médico a completa destruição do mundo tal qual eles o conheciam. Pelas ruas cães e homens dividem a sarjeta e acotovelam-se por um pedaço de pão. Nos mercados, nada sobre as prateleiras. A mulher do médico os leva pra casa e institui uma nova ordem, onde se faz essencial que um se responsabilize pelo outro.
Os cegos descobrem-se, alimentam-se, cuidam-se mutuamente e é nesse novo modo de vida, que o filme surpreende pela recuperação da visão ao primeiro cego. Então aquele grupo que reproduz a situação de todos os seres da Terra, percebe que há esperança de voltar a ver. Mas antes,o que o filme propõe talvez seja que a recuperação da cegueira se deu no momento em que o primeiro cego parou de enxergar e teve que reinventar uma nova forma de viver que não seria como a conhecemos, permeada de individualismo e ausente de sentidos.É como se ,somente através do rompimento com a visão, o homem começasse paradoxalmente a enxergar e pudesse redescobrir o mundo, não somente com seus sentidos básicos, mas com a sensibilidade, dando nova forma ao conceito de humano.
O filme, quase que literalmente, reproduz com fidelidade condizente com seu formato, o texto de Saramago, em um ritmo que não conduz ao pensamento distanciado, mas arrasta às sensações as mais aterradoras, devido à imediata identificação do público com o que se mostra na tela. O assustador é que somos essencialmente tudo aquilo que nos amedronta e cada conflito descrito na tela reside em nosso interior em estado de latência. O filme não convida somente à reflexão, vai além, impõe verdades, desnuda tabus e traz à tona o que somos, com tudo aquilo que não conseguimos mais enxergar.
Viva os jovens que pensam
Há 8 anos
Um comentário:
Tatiane,
Apreciação, de tão contundente, irrepreensível. Belo artigo! Visceral pelo conteúdo, detalhado em sua forma natural.
PARABÉNS! A cada dia melhor...
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