“Tumulto, corra que o tumulto está formado, vem cá vem ver, que dentro do tumulto pode estar você”.(O Rappa)
O conflito de traficantes no Rio de Janeiro não deve levar, ao contrário do que aparenta, a uma solução rápida, eficaz e pontual, como sugerem as declarações do Secretário de Segurança José Mariano Beltrame e dos comandantes da polícia militar e civil. Como dizem os antigos, o buraco é mais embaixo e passa por um processo de exclusão social que não só fomenta a revolta como legitima a violência, conflagrada não somente contra a parcela da população aquém dos índices de desenvolvimento humano, esmagada sob política públicas de confronto, celebradas pelo governador carioca, mas também contra os ditos agentes da guerra civil que hoje ganha as capas dos jornais para júbilo da mídia, a saber, policiais e traficantes.
Soldados armados, amados ou não
Com baixas de ambas as partes os dois exércitos estudam-se, analisam a estratégia e em suas ações não se preocupam com as centenas de civis colocados em linha de tiro quando de seus confrontos, quase sempre previstos e aguardados. Dos dois lados existem subversões, exageros, exceções, entretanto somente contabilizam-se os mortos do lado de cá, onde aguardam as câmeras. A eles, os outros, sobram os cães, a humilhação das revistas, o pé na porta dos barracos no cume do morro onde não costumam chegar as luzes midiáticas, contanto preocupem-se em equipar seus repórteres com coletes à prova de balas.
No entanto não cabe mais definir o corpo societário, segregando-o entre excluídos e excludentes, pretendendo que a simples aplicação das leis sob um Estado utopicamente de direito possa solucionar o problema. Resta-nos administrar a conseqüência endêmica das praticas setorizadas que limitam as comunidades mais pobres ao seu próprio espaço físico e “que se resolvam por lá”, com a criação sazonal de escolas e hospitais no campo emergencial de práticas essas que não foram suficientes para conter o alastramento do vírus da violência em última escala, explodindo por sobre os ombros do corpo policial do Rio, nas hélices de um helicóptero que foi feito para levar a segurança por sobre sua fuselagem semi-blindada.
Política de confronto
Segundo o comandante geral da PM, está em negociação a compra de um modelo blindado que certamente será de grande utilidade frente à guerra civil carioca. Em que pesem as vidas de servidores públicos arriscando-se por acreditarem no modelo de segurança imposto pelo governo (não enfrentariam incursões quase diárias em favelas onde os aguardam armamentos centenas de vezes mais sofisticados que os que envergam se não o fizessem), não se pode crer que armar melhor a polícia surtirá efeito além dos fogos de artifício dos grandes jornais pela oferta de noticiário. Tão somente ocorrerá a momentânea sensação de segurança somente nas pautas dos jornais diários, uma vez que a classe média espremida entre o medo e a raiva, já não consegue experimentá-la.
Acima da lei
Não existem leis que possam punir de forma eficiente indivíduos que não se sentem abarcados por ela, sob um estado que não respeitam e valores de uma ética distante do seu cotidiano. As prisões construídas em cada estado brasileiro jogam para debaixo do tapete a realidade de que a cidadania não é para todos, tão somente para aqueles que alternam-se entre documentos oficiais e estatísticas, quando passam de contribuintes à vítimas da violência urbana.
Quem são os cidadãos?
O mundo dos registros, dos impostos e obrigações não é válido para uma sociedade paralela onde a desordem se responde com a imposição da força. Afinal saúde, educação e emprego são direitos fundamentais garantidos pela Constituição, numa configuração que não abarca a todos, apenas aos cidadãos que enxerga. Longe dos olhos da justiça permanece um aglomerado de pessoas vivendo entre o medo do próximo e a indiferença do outro. No cenário que se configura hoje já não cabem mais os estereótipos de bandidos e mocinhos, onde os primeiros eram divididos entre bons e maus, esses últimos que roubavam mas protegiam sua própria comunidade em oposição aos heróis, de fardas ou sem, que sacrificavam suas vidas em prol de uma sociedade que os aplaudia.
O resultado da subversão da humanidade em que muitos dividem o pouco num espaço exíguo e poucos caminham cegos em suas ilusões de prosperidade gerou mutações sociais, relações corrompidas num ambiente em que a dor chega para todos. Já não há mais classes, corrupção e violência chegam a níveis inimagináveis, principalmente porque estivemos muito preocupados contando nossos mortos, enquanto o que acreditávamos ser o outro lado sofria baixas que julgávamos necessárias. Somos todos resultantes da mesma prática doentia e excludente. Ainda queremos apenas segurança no ir e vir, sem pensar que este conceito passa pelo primordial respeito ao próximo e seu igual direito não só de ir, mas também vir se assim tiver vontade.
Estado de direitos iguais
Resta hoje o tempo de repensar esse conceito e avaliar quão longe fomos na nossa tentativa de controlar o incontrolável. Massas de pessoas não ficam muito tempo sob o tacão armado do Estado. Sobram elementos que transbordam das vielas, ganham as ruas e chegam até as nossas janelas. Incômoda realidade?Certamente. Mas a conclusão persiste no fato de que somos definitiva e irremediavelmente semelhantes, em fragilidade e desejos. Cabe-nos romper o muro subjetivo que ainda persiste e recriar o governo sob um estado verdadeiramente de direito, não somente para alguns mas para todos,cidadãos.
Um comentário:
Oi, Tati!
De fato, incrível seria não mostrar a indignação diante de tanto paradoxo existente nas naus de nossa baía, que de nada tem precisa... E a gente se depara com notícias emergenciais, em que, à margem de um acontecimento desses, como o do Morro dos Macacos, verbas e mais verbas são liberadas pelo Governo à despeito de reforçar o que não existe.
É tudo o produto de nossa "chafurdada" sociedade. Comecei a escrever algo sobre isso, mas ainda estou nas reticências do caminho.
Excelente de sua parte! I like this!
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