terça-feira, 7 de julho de 2009

Caranguejos na lama praticam antropofagismo?

“A nossa independência ainda não foi proclamada”
Oswald de Andrade
Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928


Em sete de julho de 2009, Michael Jackson ,astro do pop, será sepultado em rede mundial.Segundo nota no jornal Folha de São Paulo, portais eletrônicos especulam se o evento “derrubará” a internet, conforme ocorrido no dia da morte do cantor, quando o site de buscas Google registrara indisponibilidade no acesso a internautas. No mesmo dia, em matéria da própria Folha, a página do jornal Daily News atingia o número de 21,3 milhões de acessos, na cobertura dos desdobramentos desde o chamado para a emergência médica no Rancho Neverland,de propriedade do artista,até a divulgação precisa da hora de seu falecimento.
Aqui no Brasil a cobertura é extensa : jornais impressos, rádios, sites de noticias, canais de televisão e demais representantes da grande mídia divulgam notas sucessivamente, buscando cobrir o que parece ser o maior evento mundial do ano contrastando com a divulgação do resultado das eleições norte-americanas no fim do ano passado e firmando seus propósitos na busca desenfreada de mais informações pelo público.
Ao que se justifique informar a perda de um dos maiores símbolos da música intitulada “popular” mundial em seus quase cinqüenta anos de carreira e de contraditórias atitudes, sempre sob os holofotes da mídia, salta aos olhos o confronto entre os produtos da indústria de entretenimento avidamente absorvida em bits e pixels sites afora e o quase total desconhecimento do universo brasileiro frente ao que realmente suscitaria a alcunha de “pop”,feito pelo povo, no caso o nosso.
“Nunca fomos catequizados Fizemos foi carnaval”.
Oswald de Andrade


Já em 1928, o manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, mesmo germinado nos mais privilegiados berços da elite paulistana, conclamava a produção de cultura de viés próprio,original, reconhecendo a influência direta das vertentes externas, mas conclamando a uma tomada de consciência sobre o processo de absorção de conhecimento.Para isso devorar, pregava, o que de bom lhe aprouvesse, regurgitando novas formas de expressão e percepção de si e da realidade. Hoje, afora as aulas de literatura e linguagem, antropófagos e seguidores dormitam perenes no esquecimento nacional.
“Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval’.
Caetano Veloso,Tropicália.


Mais tarde, na década de 60, as águas da música popular desaguariam nos trópicos, sob o leme de Caetano Veloso, Gilberto Gil e os mutantes, resgatando em suas embarcações os canibais paulistas, trazendo as cores da experimentação estética e cultural.
Sem renegar a guitarra do rock, os tropicalistas propunham um tempero nacional: a miscigenação de regionalismos e elementos internos, como o forró e o folclore, “girando na roda-gigante” de ritmos nossos e compondo uma palheta de infinitas possibilidades.
Era a transformação do espectador em agente pelo reconhecimento da própria identidade brasileira, sincrética e plural, tecida nos fios da renda nordestina, com o tingimento de séculos de colonização européia e, por que não, indígena e africana.Como diria Caetano, ”não entendemos nada”.A vanguarda virou dialeto para pequenos grupos de discussões teóricas, rompendo com a base popular e generalista.Virou item de enciclopédia.
“E toda fauna flora grita de amor
Quem segura o porta-estandarte
Tem a arte, tem a arte”
Nação Zumbi-Maracatu atômico


Se de todo desprezados os manifestos e os projetos de construção de um discurso nacional, apoiado na produção cultural do Oiapoque ao Chuí, foi na lama,mais precisamente no Mangue,que os antropófagos retornaram à vida.Em 1994 era divulgado o manifesto “Caranguejos com cérebro”, precursor do manguebeat, ecossistema dos mais ricos do planeta e que gerou nomes como Chico Science e nação Zumbi.
Sob o estandarte da “parabólica na lama”, os mangues boys buscavam inundar as artérias de Pernambuco e do mundo com a expressão da mais pura música popular brasileira, em ritmos como o maracatu, o frevo e o carimbó, germinada sob as influências do contexto geral ,mas sim, com consciência e método, costurando em retalhos, culturas diferenciadas mas de igual e reconhecida importância :nós , os caranguejos tupiniquins e eles, resto do mundo.
Se portadores de uma mensagem de construção comum, os “manguetowns” não conseguiram acessar as grandes artérias da cultura nacional, destinada tão somente a absorver o fácil , rápido e breve. Permaneceram em guetos, como seus antecessores da tropicália, enquanto a metrópole se tornava a babel midiática em que todos se entendiam porque na verdade não havia nada a dizer.

Hoje, a cena cultural curva-se ante o cenário cibernético.Rompendo fronteiras,deitando por terra legislações de proteção ao conteúdo intelectual e firmando um novo pacto entre público e artista, a internet é o grande agente catalisador dos movimentos artísticos interativos, que o escritor Ferreira Gullar, autor do manifesto neoconcretista de 1959 e uma das influencias do tropicalismo, chamaria de “não objeto”, ou seja, a construção do sentido e da própria existência do objeto artístico ocorre no contato, no processo entre emissor e receptor, exigindo a ação deste ultimo, na produção de conteúdo relevante.
Mais do que espaço onde dizer,é preciso ter o que dizer, reconhecendo no fenômeno da globalização tão unicamente o propósito de estabelecer diálogos entre culturas e reafirmando o contexto da comunicação como o evento de construção de sentido entre partes que se posicionam como agentes. Mais do que um discurso amplamente divulgado,é necessário que se ergam inúmeras vozes e que sejam como tais reconhecidas:plurais, complementares, legítimas,brasileiras.
Resta aos herdeiros dos canibais tupiniquins escolherem se, na selva pixelizada dos dias atuais, se optará pela caminhada pelo espaço infinito de expressões humanas onde figure em igualdade de condições a nossa, ou se iremos em carreata, acompanhar o funeral em carruagem do cantor americano como zumbis pertencentes a túmulos da nossa própria consciência, na referência ao mais famoso videoclipe do artista, este sim, amplamente divulgado pelos meios de comunicação.Os caranguejos continuam a chafurdar na lama, ao sol do nordeste,esperando pelo dia em que, trazidos à tona, passem a existir para o público em geral.

Um comentário:

Filipe Barbosa disse...

Vixi! Que tapa na cara sem dó nem piedade! Posso respirar, pelo menos? Caramba, depois de contextualizações tão pertinentes, a única coisa que posso dizer é que quero que sejamos "irmãos de sangue" em outras vidas... Mãe e filho, sei lá... Ainda preciso respirar... rs...

P.S.: Quero ser você quando crescer...